O encontro de professores Waldorf – Reflexões

Queridas/os professoras/es Waldorf das escolas portuguesas:

Na sequência do encontro de professores, promovido pela APEPW, no dia 20 de maio, parte do qual foi gravado em vídeo, decidi partilhar convosco uma pequena reflexão, após ter ouvido o extraordinário testemunho sobre o vosso trabalho neste igualmente extraordinário momento. 

Nesta altura da minha vida, após cerca de 40 anos dedicados à existência da pedagogia Waldorf no nosso país a qual, pouco a pouco, me foi desvelando a missão da Antroposofia no mundo atual, pouco mais posso fazer senão olhar, escutar e tentar compreender o que se passa à minha volta no cumprimento dessa missão.

Por isso vos quero falar hoje do que vi e ouvi no vosso encontro à luz da Antroposofia.

Partindo da convicção de que nada acontece na visibilidade das nossas vidas que não tenha uma causa e um desígnio profundos, ditados pelo mundo espiritual, é-nos exigido que sejamos capazes de cultivar a clareza do pensamento, o calor do coração e a justeza do agir, não para nos servir a nós próprios, mas para servir os outros que, perto de nós, representam a humanidade. 

Quis o desafio, que atualmente se apresenta à humanidade, exigir de cada um o afastamento da visibilidade do(s) outro(s), ao mesmo tempo que, mais do que nunca, sobretudo no caso dos professores, esse(s) outro(s) necessita(m) de ser acompanhado(s). Como fazê-lo, foi sem dúvida a pergunta angustiante de cada professor por esse mundo fora. 

No meu entender essa pergunta só se pode tornar verdadeiramente inquietante se o ser humano, face ao vazio que a distância física aparentemente traz, fique refém desse vazio, porque para além da exterioridade do correr da vida, deixou de vislumbrar a dimensão espiritual da existência. 

Ser um professor Waldorf implica a consciência de que o papel essencial que lhe cabe como verdadeiro acompanhante dos seus alunos, realiza-se quando, liberto dos constrangimentos da fisicalidade próxima, ele pode disponibilizar a sua mais profunda identidade para aproximar-se, compreender e amar o Ser de cada aluno, no espaço noturno do Grande Encontro Meditativo. O trabalho diurno, dia após dia, em frente dos seus alunos, é apenas a consequência da proximidade que conquistou na noite anterior. 

Servir os seus alunos consiste, noite após noite, fortalecer os laços entre o seu próprio Eu e o Eu que o desenvolvimento de cada criança está predestinado a receber do mundo espiritual. Só assim poderá fornecer-lhe as condições físicas e humanas «que permitam que a sua natureza  anímico-espiritual se harmonize com a sua natureza física de forma a realizar o seu processo de desenvolvimento», o grande objetivo do trabalho de cada educador, segundo Steiner.  

No seio desta consciência os laços não se quebram, a ausência não é real, o sentir acalenta-se no calor da verdadeira relação que permanece. A pergunta fundamental que o professor deve tentar responder já não é, como fazer na atual situação, mas o que é que só eu posso fazer em cada dia, fruto do meu trabalho noturno.

Se parte da humanidade, vivendo alienada desta dimensão da existência, depende da fragilidade de cada momento, das impressões sensoriais que logo se desvanecem, do significado ininteligível da presença física dos outros, a exigência do desafio que a atual pandemia colocou – viver-se apartado da visibilidade do(s) outro(s) –  torna-se numa oferta para que essa mesma humanidade acorde desse adormecimento e veja o que os seus olhos lhe cobriam: «Eu, não sou eu, Eu sou aquele que caminha a meu lado sem que eu o veja…»

Dir-me-ão, e a observação, mão na mão, olhos nos olhos, que todos os dias acontecia? É verdade que deixou de acontecer no decorrer da atual rotina diária. Mas, também é verdade que ela focava apenas a impressão fugaz do momento, pois a verdadeira observação que, transcendendo o imediato, nos permite mergulhar na dimensão do outro – Quem és tu? – é aquela que o Colégio de Professores decide fazer, não em presença da fisicalidade da criança, mas evocando a presença invisível do seu Ser, para que lhe seja dito aquilo que ela precisa que cada um faça.   

Quando vos ouvi mencionar o esforço de «ajustar a cada classe» o que iam fazendo «para respeitar o desenvolvimento das crianças», porque «sou eu que tenho de acompanhar os meus alunos… estar com eles, fazer o caminho com eles», «estar ainda mais ligada às crianças», compreendi como, mesmo em condições que parecem anular os fundamentos da pedagogia, a vossa ligação àquilo que é a sua verdadeira essência, prevalecendo na vossa vontade revela-se no vosso estar e no vosso fazer.  

A consciência de «levar para o sono», intensificando o trabalho noturno, para que o verdadeiro contacto não seja perdido, desperta em alguns de vós (como foi dito) e despertou em mim a «gratidão» de o podermos fazer, graças a, algures nas nossas vidas, termos escolhido servir o ser humano através dos nossos alunos, acontecesse o que acontecesse!  

Nestas circunstâncias preencherem o vosso sentir com os olhares, os risos, «a forma tão bonita» como se ligam, as brincadeiras e os pequenos episódios da sua vida familiar, quererem «trazer coragem e alegria» às crianças no seu dia-a-dia, porque efetivamente «a escola lhes foi roubada», testemunham como se comovem – movem com – o sentir dos vossos alunos e se empenham em lhes devolver o que lhes foi tirado. Para mim é sinal da vossa genuína disponibilidade em servir o outro com coragem e abnegação. 

E quem assim se dispõe consegue encontrar fontes para partilhar o mundo e a vida, nas manifestações que inspiram o olhar a contemplar a riqueza das suas formas, ajudando a anular o medo e a suscitar a coragem, mas principalmente a reconhecer à sua volta «as forças que alimentam e levam ao mundo espiritual». E é isso que anula as «forças opostas» que parecem querer dominar-nos, como nos disse a Pamela, que não desistiu nas atuais circunstâncias de levar a Euritmia aos seus alunos!   

Provando que são os grandes desafios, aqueles que parecem ultrapassar as nossas forças, que nos abrem horizontes para melhor servir, porque tiveram que penetrar o espaço familiar dos alunos, ouvimos como acabaram por envolver pais nas tarefas dos filhos, por vezes com empenho e entusiasmo. E como se evidenciou mais uma vez a importância das artes na pedagogia Waldorf: os professores que não recearam reinventar as suas práticas artísticas mesmo à distância, envolveram os pais nos trabalhos dos filhos com entusiasmo, transformando essa experiência numa atividade sanadora ao alcance de todos, para minorar as dificuldades que todos vivem, fossem as artes plásticos, as artes manuais e até mesmo o ouvirem em família o conto do dia. Mas outro aspeto sanador, como partilharam, surgiu do vosso empenho em se manter atentos: ajudaram as famílias a organizar-se, a gerir a situação do ensino à distância, a dar o vosso apoio sempre que necessário, no fundo tentaram responder à questão do serviço que a pedagogia Waldorf pretende prestar à sociedade: «como é que eu me posso pôr ao serviço de quem precisa?» Esta é a meu ver a pergunta fundamental de cuja resposta decorrerá a mudança que pretendemos trazer ao mundo através dos nossos alunos.

No entanto, peço-vos que considereis: a resposta não é a mudança, mas o abrir caminho na sua direção! A resposta pode ser um simples gesto, uma curta palavra, um ato insignificante, cujo efeito no outro pode desencadear essa mudança, sobre a qual ainda nada sabemos. Temos que ser suficientemente humildes na nossa forma de servir: há que fazer a pergunta e saber ouvir a resposta, mas principalmente ser capaz de atuar realizando o simples gesto, dizendo a curta palavra, concretizando o mais insignificante ato, para mitigar o que o(s) outro(s) precisa(m) e não o que eu próprio penso ou sonho que o mundo precisa.

O legado que Steiner nos deixou tem como fundamento a Ciência Espiritual, cuja «tarefa é fornecer uma cosmovisão prática que contribua para a solução das tarefas mais importantes da humanidade atual e para o seu desenvolvimento». Exige-nos «um autêntico conhecimento da vida, cujas leis fundamentais não serão no futuro diferentes das do presente… Não deixará portanto de respeitar o que existe. Seja qual for a necessidade de reformas, ela procurará no que atualmente existe os germes para o desenvolvimento futuro, para a transformação futura, deduzindo-a do que existe, pois o que existe contem o princípio da evolução…. Toda a vida humana contem as disposições para o seu futuro.»

Por isso «o estudo espiritual da entidade humana é suscetível de fornecer os meios fecundos e práticos para solucionarem os problemas prementes da atualidade.» 

Se a comunidade internacional do Movimento das Escolas Waldorf, meditasse profundamente neste testemunho de Steiner, que foi dos primeiros a focar a área da Educação, remontando a 1907 (editado depois como «A educação da criança segundo a Ciência Espiritual), talvez tivessem evitado a tendência, que ocupa outros meios politico-educativos, das teorias conspirativas para analisar a atual situação!

Na tarefa que o mundo atual nos trouxe, como professores, ajudou-vos o respeito que sentiram pelas condições que rodearam os vossos alunos e famílias, o esforço de encontrar as possíveis soluções para realizar essa tarefa, o desígnio de suprir as necessidades de cada aluno para o ajudar a vislumbrar o seu próprio futuro e portanto a «dar propósito e direção à sua vida.» 

Se, da contemplação do Homem em devir, que existe em cada criança, os princípios para a sua educação pudessem simplesmente ser por nós deduzidos, como Steiner afirmou, nada mais precisaríamos. No entanto reconhecemos que não somos efetivamente ainda capazes de tal dedução. Steiner também o reconheceu, por isso no curso que deu aos professores da 1ªescola em Stuttgart, deu instruções precisas sobre o que ensinar, paralelamente ao conhecimento do ser humano, a partir das quais se construiu o Curriculum Waldorf. Este contem, idade a idade, aquilo que a natureza humana necessita para realizar «as disposições do seu futuro», consequentemente contribuir para o futuro da evolução da humanidade. Por isso queridas professoras não menosprezem os chamados «conteúdos», como não sendo importantes, especialmente agora, que estão ausentes da sua escola. Claro que os conteúdos são importantes! Os conteúdos do curriculum Waldorf, não são conteúdos de mera informação escolar, são o alimento que cada idade precisa para realizar plenamente as exigências do seu crecimento.    

Há que trabalhar muito sobre o porquê e para quê se trabalha cada aspeto do curriculum naquele preciso momento da vida dos alunos. E fazê-lo com gratidão, pois sem esse curriculum não saberíamos como responder de forma adequada às necessidades de desenvolvimento de cada grupo etário! 

Peço-vos que vos debruceis sobre estas questões fundamentais da vossa missão, se continuardes a encontrar-vos para partilhar experiências, saberes e sentires. 

Com admiração, respeito e afeto 

Leonor Malik

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